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Capítulo 1Antes da Chuva

Antes da Chuva

O despertador tocou duas vezes antes de ser silenciado por uma mão pequena, ainda coberta pela manga do moletom.

Ayaka piscou devagar, encarando o teto. Lá fora, o céu hesitava entre cinza e azul, como se ainda estivesse decidindo se o dia realmente valia a pena.

A casa estava quieta.

O tipo de silêncio que não incomodava, mas preenchia os cantos — como uma toalha quente sobre os ombros num dia frio.

Ela se levantou, vestiu o uniforme devagar. A gola estava meio torta, mas ela não ligou. Passou os dedos pelo cabelo e pegou a presilha em forma de estrela. Prendeu do lado direito, como fazia todos os dias.

Desceu as escadas sem fazer barulho.

Na cozinha, o cheiro do arroz no vapor misturava-se com café coado na hora.

Nicole estava de costas, mexendo algo na frigideira. Cabelo preso num coque frouxo, vestindo uma camiseta preta de banda antiga e uma calça folgada, com chinelos gastos. O rádio tocava bem baixinho — uma música instrumental suave, quase imperceptível.

— “Bom dia, meu solzinho,” disse ela, antes mesmo de se virar.

Ayaka não respondeu com palavras, só um sorriso tímido e um aceno pequeno.

Sentou-se à mesa, pegando um livro da mochila. O marcador ainda estava na página 37, mas ela relia o mesmo trecho há dias.

Às vezes não era sobre terminar, era só sobre ter algo pra segurar.

— “Teu pai saiu mais cedo hoje,” comentou Nicole, sem drama, como quem comenta sobre o tempo. “Disse que precisava resolver umas coisas antes do trânsito engolir ele.”

— “De novo?”

— “É… de novo.”

Nicole virou o que tinha na frigideira — ovos mexidos com pedacinhos de cebola dourada — e abaixou o fogo.

Ayaka passou o dedo pela borda do livro, distraída.

— “Ele saiu antes do café ficar pronto?”

— “Levou um na garrafinha. Reclamou que eu usei pouca açúcar.”

— “Mas ele gosta de café amargo…”

— “Pois é,” Nicole respondeu, rindo de leve. “Teu pai é confuso até no gosto.”

Ayaka soltou um riso nasal, discreto, e voltou os olhos pro livro.

Nicole colocou dois pratos na mesa. Tudo simples: arroz branco, ovo mexido, banana fatiada no canto do prato. Nada gourmet, mas tinha algo caseiro, quase cerimonial ali.

— “Violet ainda não levantou?” Ayaka perguntou, mordendo a banana com cuidado.

— “Ela acordou, mas fingiu que não.”

Nicole pegou a chaleira e encheu duas xícaras. “Chá ou café hoje?”

— “Chá…”

— “Camomila?”

— “Camomila.”

Nicole assentiu e sorriu, colocando a xícara na frente dela com a mesma calma de quem tem o tempo sob controle.

Foi aí que os passos pesados soaram no corredor.

— “Tô com fome,” disse Violet, surgindo na porta com o cabelo preso num coque frouxo e uma blusa preta oversized com estampa de morcego. O short jeans rasgado era o mesmo da véspera.

Ela se jogou na cadeira como se o mundo tivesse peso demais.

— “Bom dia pra você também,” disse Nicole, puxando outra xícara.

— “Cadê o pai?”

— “Já saiu.”

— “De novo?”

Nicole apenas ergueu uma sobrancelha, colocando chá também pra Violet.

— “De novo,” repetiu. “Reclamou da geleia.”

Violet fez uma careta.

— “Aquela geleia nova? É horrível.”

— “Foi você que pediu ela no mercado,” Nicole lembrou.

— “Na embalagem dizia que era de morango.”

— “E é.”

— “É veneno.”

Ayaka soltou uma risadinha abafada. Violet olhou de lado pra irmã, sem conter um sorriso de canto.

Nicole aproveitou o momento de trégua e serviu o chá com mais uma colher de açúcar só por precaução.

— “E aí? Prova de matemática hoje?” ela perguntou, olhando pra Ayaka.

— “Não… só revisão.”

— “Arte,” murmurou Violet. “Mas a professora vai faltar, tomara.”

Nicole se sentou também.

— “Então hoje vocês podem voltar mais cedo?”

Ayaka assentiu. Violet deu de ombros.

O silêncio veio de novo, mas dessa vez era confortável.

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O vagão do metrô oscilava com o ritmo do mundo.

Violet, encostada na lateral da porta, com os fones pendurados, encarava o vidro — não o reflexo, mas o que vinha além dele.

Ayaka estava sentada, com o livro no colo, as pernas juntas, os olhos pousados numa frase que lia pela quarta vez.

Um anúncio automático tocou, avisando da próxima estação.

Ninguém prestou atenção.

— “Você acha que o papai gosta do que faz?”

A pergunta veio baixa, quase como se Ayaka falasse só com o livro.

Violet não respondeu de imediato.

— “Sei lá.”

— “Ele tá sempre saindo antes, voltando tarde...”

— “Ele nunca fala sobre o que faz,” Violet cortou, com calma. “Então deve ser importante.”

Ayaka soltou o ar pelo nariz e fechou o livro, olhando discretamente pra irmã.

— “Você não sente falta dele?”

Violet virou os olhos pra janela.

— “Sinto mais falta da geleia boa.”

Ayaka riu, e Violet tentou esconder um sorriso.

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Nicole enxaguava os pratos, os dedos molhados de sabão.

A pia ainda tinha vapor. A água quente era sua última indulgência antes do frio do dia.

No canto da bancada, uma marmita esquecida.

Tampada, pronta, ainda com cheiro quente.

Ela ficou olhando pra ela por alguns segundos.

Como se fosse uma conversa que ninguém teve.

Nicole limpou as mãos no pano de prato. Pegou a marmita.

Colocou de volta na sacola, amarrou com cuidado.

Ficou ali, parada, por um momento.

— “Vai passar...”

Ela sussurrou.

E talvez estivesse falando da comida.

Ou talvez… de tudo.

A primeira gota de chuva bateu no vidro da janela, como se confirmasse.

Fim do Capítulo 1