Capítulo 2 — Cuidado com os dias de sol
Cuidado com os dias de sol
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O céu, irônico, abriu.
Depois de uma manhã cinzenta e uma madrugada de chuvisco fino, o sol resolveu sair como se nada tivesse acontecido. A luz se espalhava pelas ruas molhadas, criando reflexos dourados nas poças ainda intactas.
Ayaka tinha deixado o guarda-chuva em casa, mesmo assim.
Violet, por outro lado, usava um capuz só por estilo — ou talvez pra esconder o fato de que ela não tinha dormido direito.
As duas estavam sentadas no muro baixo em frente à escola.
A aula tinha terminado mais cedo, e o ponto de ônibus ficava lotado nos primeiros vinte minutos. Elas preferiam esperar ali, longe da multidão e dos assuntos rasos demais pro fim de tarde.
Ayaka folheava um mangá velho que encontrou na sala de leitura.
Violet desenhava no canto de um caderno, com fones no ouvido e os olhos semicerrados.
— “Essa cena é linda,” disse Ayaka, mostrando uma página com dois personagens de mãos dadas numa ciclovia.
Violet não respondeu.
Ela estava desenhando os mesmos olhos pela terceira vez.
Ayaka sorriu de canto.
— “Você ainda não desenhou a gente juntas.”
Violet olhou de soslaio, mas não disse nada.
No caderno, o esboço era de uma personagem com mechas roxas e expressão intensa.
Muito parecida com ela mesma.
Mas ninguém precisava saber disso ainda.
Foi então que o som familiar de uma moto antiga ecoou pela rua.
— “Não acredito…” murmurou Ayaka.
Violet ergueu os olhos, sem expressão.
A moto parou com um leve tranco, e a figura sobre ela tirou o capacete com um movimento exagerado, como se estivesse em um comercial.
Cabelos ruivos presos num coque improvisado, óculos escuros empurrados pra cima da cabeça e uma jaqueta xadrez amarrada na cintura.
— “Meninas do meu coração!” gritou Yuna, como se fosse uma estrela de TV entrando em cena.
Ayaka sorriu imediatamente.
Violet levantou uma sobrancelha.
— “Yuna…” disse Violet, seca. “Você não tinha que estar em outro país?”
— “Tinha,” respondeu Yuna, sorrindo. “Mas o mundo sentiu minha falta.”
Ela desceu da moto, pegou uma sacola grande de papel e caminhou até elas.
— “Passei numa doceria que abriu aqui perto. Trouxe guloseimas, fofocas e histórias duvidosas.”
Ela se sentou ao lado de Ayaka, já abrindo a sacola. “Cadê o brilho nos olhos de vocês? Isso aqui não é almoço de domingo, mas serve.”
— “Você devia avisar antes de aparecer,” disse Violet, tentando esconder o canto da boca subindo.
— “Se eu avisasse, qual seria a graça?”
Yuna entregou um pão doce pra cada uma e pegou o seu.
— “Você foi buscar a gente... só por isso?” perguntou Ayaka, mansa.
Yuna piscou.
— “Claro que não. Eu tava entediada. E queria ver vocês.”
Mordeu o doce e falou com a boca cheia. “Nicole me deu um esporro semana passada por sumir. Tive que me redimir.”
— “Mamãe disse isso?” Ayaka riu.
— “Disse olhando no fundo da minha alma. E depois me abraçou. Foi confuso. Eu amei.”
Violet tirou um pedaço do doce e comeu em silêncio.
Yuna a observou de canto.
— “Você tá bem, Vio?”
— “Tô sempre bem.”
— “É,” disse Yuna, encostando no muro. “Esse é o problema.”
O silêncio voltou por um segundo, mas era diferente. Um silêncio de gente que se entende.
— “O Nick tá sumido de novo, né?”
Yuna perguntou, sem olhar diretamente.
Ayaka e Violet se entreolharam.
— “Ele sai cedo, volta tarde,” respondeu Ayaka, como se recitasse algo que já decorou.
— “Normal,” completou Violet, desviando os olhos. “É sempre assim.”
Yuna respirou fundo e manteve o sorriso.
— “Trabalho puxado... O mundo não para, né?”
— “É,” disse Violet. “Mas às vezes ele podia parar um pouquinho. Tipo... pra tomar café.”
Yuna olhou pra ela com ternura, mas não disse nada.
Ela sabia que não era só sobre o café.
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Mais tarde, Nicole lavava os copos na cozinha.
O som da água correndo abafava os desenhos animados na sala.
Violet estava jogada no sofá, Ayaka deitada de lado, com a cabeça apoiada no colo da irmã, fingindo que dormia.
Yuna apareceu na porta da cozinha, apoiando o ombro na parede.
— “Elas tão bem, sabe? Mas… você sente quando algo tá faltando.”
Nicole não respondeu de imediato.
Enxaguou o último copo, secou as mãos e olhou pela janela.
— “Elas são mais fortes do que parecem.”
— “Elas são suas filhas. Claro que são.”
Nicole soltou um riso breve e se virou.
— “Obrigada por passar aqui. Foi bom pra elas.”
— “Foi bom pra mim também,” respondeu Yuna.
Fez uma pausa, mais séria.
— “Você acha que ele vai conseguir manter isso escondido por muito tempo?”
Nicole cruzou os braços, encostando na pia.
Seu olhar se perdeu em algum ponto entre a parede e o tempo.
— “Enquanto não machucar elas... não importa.”
Yuna ficou em silêncio.
Depois assentiu, com um suspiro.
— “Só... cuidado com os dias de sol. Eles sempre chegam depois de muita chuva.”
Nicole sorriu com leveza, sem ironia.
— “E às vezes... eles são piores que a própria tempestade.”
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Fim do Capítulo 2