Capítulo 3 — Só mais uma sexta
Só mais uma sexta
A casa tinha cheiro de massa assando.
Não o cheiro das pizzarias chiques do centro, mas aquele aroma caseiro e levemente desajeitado de queijo escorrendo além da borda e orégano queimando na beirada da assadeira.
Nicole estava de avental, os braços cruzados enquanto observava o forno.
Na sala, Violet disputava controle com Ayaka, que insistia que “cooperativo é mais divertido que versus”.
Yuna, claro, era o caos em forma humana: já estava com uma fatia de pizza roubada antes mesmo da primeira fornada oficial sair.
— “Se derem bobeira, eu como a sobremesa também,” avisou, com um pedaço de queijo esticando do prato até a boca.
— “Você é uma adulta,” disse Ayaka, rindo.
— “Sou uma ameaça,” corrigiu Yuna, com orgulho.
Nicole apenas balançou a cabeça e sorriu, servindo os primeiros pedaços.
A sexta-feira era sagrada. Desde que as meninas eram pequenas, aquela noite pertencia à casa. Sem celular na mesa. Sem pressa. Sem ausências.
Ou quase isso.
O relógio da parede marcava 21h08 quando a porta da frente se abriu.
Nick entrou com passos calmos, a mochila pendurada em um ombro só e o casaco meio amarrotado.
— “Olha quem resolveu aparecer,” disse Nicole, sem virar.
— “Boa noite pra você também,” respondeu ele, colocando a mochila no gancho da entrada.
Violet ergueu os olhos do controle e fingiu um tédio.
Ayaka deu um meio sorriso, como se não soubesse se estava mais feliz ou aliviada.
— “Oi, meninas.”
— “Chegando agora?” perguntou Ayaka.
— “É sexta, não é?”
— “Era.”
Nick soltou um riso nasal e foi até a cozinha, abraçando Nicole por trás com uma das mãos ainda com cheiro de tinta de caneta.
— “Trouxe refrigerante. Do de uva, que só você gosta.”
— “Então quer dizer que me ouviu semana passada?”
— “Só escuto você,” respondeu ele, deixando um beijo no topo da cabeça dela antes de soltar.
— “Mentiroso.”
Ele piscou.
Na sala, Yuna ergueu a mão como se fosse um brinde imaginário.
— “O pai atrasado chegou. A pizza agradece.”
— “Você já comeu três pedaços,” disse Violet.
— “E o meu agradecimento é proporcional ao que já comi.”
Nick caminhou até a mesa, sentando-se entre as filhas.
— “Como foi o dia?”
— “A escola continua igual,” disse Violet.
— “A gente teve uma apresentação legal na aula de história,” completou Ayaka. “Mas só legal.”
— “E o seu dia?” perguntou Nicole, servindo um copo.
Nick deu de ombros, como se não valesse o esforço de detalhar.
— “Trabalhoso. Corrido. Sabe como é.”
— “Chato?” perguntou Ayaka.
— “Nem chato, nem legal. Só… é. Um monte de coisa acontecendo ao mesmo tempo, nada importante.”
— “Uau,” disse Yuna, com ironia. “Empolgante.”
Nick deu um sorriso breve.
— “É só trabalho, Yu. Nada que valha uma história de sexta à noite.”
Nicole o observou por um segundo, depois assentiu.
— “Você vai querer café depois?”
— “Só se vier com tempo pra descansar.”
— “Tá pedindo milagre.”
O jantar seguiu com risos, pizza esfriando e a TV tocando um jogo antigo de videogame com personagens que gritavam frases em japonês.
Violet ganhou três partidas. Ayaka ficou em segundo em todas.
Yuna comeu até a última azeitona. Nicole reclamou que ninguém lavou os pratos, e Nick escapou com a desculpa de estar velho demais.
Quando a noite já parecia prestes a se dissolver no sofá, Nick se levantou e ajeitou a mochila sobre o ombro.
— “Aproveitando que ainda estão todos acordados…”
— “O que foi agora?” perguntou Violet, desconfiada.
— “Semana que vem… vou precisar viajar.”
O silêncio durou um segundo a mais do que deveria.
— “De novo?” perguntou Ayaka, com os olhos ligeiramente baixos.
— “É coisa rápida,” disse ele, com naturalidade. “Uma semaninha no máximo. Nada demais.”
— “Trabalho?” Violet cruzou os braços.
— “Trabalho,” respondeu ele. “O de sempre. Um cliente novo, evento chato, sei lá...”
— “E vai trazer lembrancinha?”
Ayaka sorriu de leve.
Nick sorriu de volta.
— “Sempre. Aliás… já até separei uma coisa ou outra. Tô levando comigo pra assinar.”
— “Assinar?”
Nick coçou a nuca.
— “É... coisa de gente esquisita. Você entende depois.”
Violet franziu o cenho, mas não insistiu.
Yuna apenas olhou pra Nicole, que também não disse nada.
A noite terminou com cada uma indo pro seu canto.
Ayaka levou um pedaço de pizza pro quarto.
Violet ficou acordada vendo o mesmo episódio de um anime pela terceira vez.
Nicole apagou as luzes da cozinha e fechou a janela.
Nick parou na porta com a mochila nos ombros.
— “Se chover amanhã…”
— “Vai molhar,” respondeu Nicole, com um sorriso de canto.
Ele soltou um riso e saiu.
A luz do poste da rua entrou pela fresta da cortina e pousou sobre o adesivo da geladeira.
Era um chaveiro de personagem raro de um anime famoso.
Ninguém nunca perguntou de onde veio.
Fim do Capítulo 3