Capítulo 4 — Coisas guardadas demais
Coisas guardadas demais
O sábado amanheceu devagar.
Sem despertadores, sem mochilas, sem pressa.
Mas mesmo sem agenda, a casa parecia sentir que alguém estava faltando.
Nicole acordou antes das filhas.
Fez café forte, como Nick gostava, e o deixou esfriar propositalmente.
Era um costume bobo — como se a presença dele ainda estivesse ali, no cheiro que subia da xícara.
Sentada à mesa, com os cotovelos apoiados e a cabeça entre as mãos, ela ouviu o silêncio da casa.
Não era um silêncio ruim.
Era só… muito presente.
Ela olhou o celular. Nenhuma mensagem ainda.
“Ele sempre manda um ‘cheguei bem’,” ela pensou.
“Sempre.”
Mas hoje, ainda não.
Violet foi a primeira a aparecer.
Desceu devagar, vestindo a camiseta do Nick — a preta com o logo de um anime velho que ninguém mais lembrava.
— “A Ayaka ainda tá dormindo?” perguntou, pegando uma fatia de pão sem falar bom dia.
— “Acordada. Só tá no quarto com os pensamentos,” respondeu Nicole, olhando pra xícara já fria.
— “Você tá mais calada hoje.”
— “Tô escutando o café esfriar,” ela respondeu, dando um sorriso leve.
Violet mordeu o pão e sentou de lado na cadeira.
— “Você sente falta dele quando ele viaja?”
Nicole demorou um pouco pra responder.
— “Não é falta. É só... mais silêncio do que o normal.”
Violet assentiu.
Ficaram ali, as duas.
Sem TV, sem som, só pão com manteiga e café frio dividindo a mesa.
Ayaka estava no quarto há horas.
Primeiro, reorganizou os livros. Depois, abriu a gaveta velha que ficava no fundo do armário.
Era onde a mãe guardava algumas fotos antigas — a maioria esquecida.
Ela tirou um álbum de couro cinza, com as bordas desgastadas.
Abriu na metade, deixando os dedos deslizarem pelas páginas.
Nick aparecia em várias.
Mais jovem, com o cabelo mais comprido, e sempre sorrindo torto — aquele sorriso meio sem paciência, meio debochado.
Mas o que chamava atenção eram as pessoas ao redor dele.
Rostos estranhos, roupas muito elaboradas.
Uma mulher com cabelo branco num vestido de couro preto.
Um homem com capa longa e espada de espuma.
Fotos em estandes, eventos. Gente com crachás. Camisetas de personagem.
Ayaka não entendia metade daquilo.
— “Devia ser coisa de convenção,” murmurou pra si mesma.
— “Ou festa de algum trabalho... sei lá.”
Fechou o álbum e olhou para a porta entreaberta do fim do corredor.
O “escritório”.
Nick chamava assim, mas ninguém entrava lá com frequência.
Ele não proibia, só… nunca abria também.
Era meio território neutro.
Ayaka se levantou. Foi até a porta, empurrou devagar.
A luz da janela iluminava o ambiente em tons azulados, suaves, refletindo no piso limpo.
Dentro do quarto, tudo parecia uma mistura de caverna secreta com templo silencioso.
Uma mesa enorme ocupava a lateral da parede, sustentando três monitores ligados num modo de descanso com telas pretas e discretas animações flutuando.
O teclado tinha luzes coloridas. O mouse parecia algo saído de um jogo futurista.
O PC embaixo era uma torre imponente, com ventoinhas brilhando em azul, e um vidro lateral onde se via a estrutura:
placa de vídeo robusta com logo “RTX 4090 OC”, um watercooler com tubos neon, cabos organizados como obra de arte.
Ela não entendia nada daquilo.
Só lembrava de quando Nick falava empolgado sobre “builds” e “tempo de render” — palavras que ela mal prestava atenção na época.
— “Deve ter gasto muito nisso,” murmurou. “Pra quê?”
Do outro lado, estantes cheias de livros de design, mangás, action figures em poses elaboradas.
Na parede, pôsteres: Overlord, Horimiya, Tate no Yuusha, One Punch Man…
Alguns estavam assinados. Outros pareciam autênticos demais pra serem só colecionáveis.
Ela se aproximou de uma prateleira.
Um boneco raro de Raphtalia, com um cartão ao lado:
“Para Nick, com gratidão — equipe de produção.”
Ela franziu o cenho.
— “Pai conhece esse pessoal…?”
Mas antes que pudesse pensar mais, ouviu um passo leve atrás de si.
Yuna estava parada na porta, apoiada no batente com os braços cruzados.
— “Achei que só eu era bisbilhoteira nessa casa,” disse com um sorriso.
Ayaka se virou.
— “Eu só… tava curiosa.”
— “Curiosidade é perigosa, sabia?”
— “É só o escritório do meu pai…”
Yuna a observou por um instante, o sorriso se suavizando.
— “É. Só o escritório.”
Ela entrou, olhou em volta, sem tocar em nada.
— “Ele é bem desorganizado, né?”
— “Até que não.”
— “Você não entende o que tá vendo ainda, né?”
Ayaka fez que não com a cabeça.
— “Mas acho que vou entender um dia.”
Yuna sorriu.
— “Vai, sim.”
As duas ficaram em silêncio por um momento.
No andar de baixo, Nicole colocava outra garrafa de café pra ferver.
Violet ajudava sem dizer nada.
E na mesa, a xícara vazia do Nick continuava ali, como se ele fosse voltar a qualquer instante.
E talvez fosse.
Mas não da forma que elas esperavam.
Fim do Capítulo 4